Criticas

Adorável Garoto

Tania Brandão


O TEATRO DO NOSSO TEMPO

Somos nada, somos pó. Somos apenas selvagens migalhas pensantes nômades sem salvação: esta é a nossa radiografia mais nítida. Duvida? Pois vá ver a excelente encenação de Adorável Garoto, de Nick Silver, cartaz do Mezanino/Sesc Copacabana. Poucos textos conseguiram, até agora, registrar com tanta densidade a percepção da sensibilidade humana no século XXI. É imperdível, de saída, por este motivo simples – está em cena o teatro do nosso tempo. O que significa uma alquimia surpreendente, chocante mesmo, de humor e drama, razão e sensibilidade, nihilismo e desesperada tentativa para defender o valor da existência humana. Seres de carne, de representação e de mentira vagam pela cena. Marionetes existenciais. Em meio ao riso, sagaz e inteligente, você leva um banho de soda cáustica. Na alma.

A montagem marca a estreia de uma revelação luminosa, uma nova diretora, um nome que se encaminha para integrar a lista dos mestres maiores do nosso palco: Maria Maya. Atriz intensa, de amplos recursos expressivos, ainda que jovem, ela conduz a cena com delicadeza e densidade, obteve um ritmo derivado diretamente do calor das emoções, pois olha o palco a partir do ponto de vista do ator. O autor desenhou as cenas sob uma chave dupla, pós-dramática, em que ação e narração estão misturadas habilmente; a direção concebeu um espetáculo calcado na dualidade razão/emoção, mas sob o comando da percepção crítica dos sentimentos, uma linha capaz de ampliar o humor e, ao mesmo tempo, sublinhar a vertigem dolorosa formidável que envolve a trama. O resultado é abissal, de tirar o fôlego.

A ação central do texto, traduzido por Roberto Burguel e adaptado por Gustavo Klein, parece simples – um filho, que saiu da casa dos pais para cursar a universidade e assumir a sua própria vida, retorna ao lar familiar em busca de abrigo contra as exigências da sociedade. Peça torta de um lar desconjuntado, ele traz um segredo, um problema moral grave que atesta a sua inadequação ao mundo: revela-se uma espécie de monstro incapaz de ver as leis fundamentais que asseguram a continuidade da vida e o equilíbrio da existência. Ao mesmo tempo, é exposto o estado de corrupção de valores e de sentimentos de sua família. No desfecho, não há moral ou final feliz, nem mesmo uma proposição dramática. De certa forma, há uma releitura bizarra de Édipo, a imposição da cegueira diante do absurdo da vida. Paira no ar uma pergunta ácida sobre a natureza exata da razão e dos instintos, a definição adequada para explicar o que é mesmo a humanidade.

A beleza da cena comove porque a direção propôs a formulação de um projeto a partir do rigor da análise do texto – a cenografia, a direção de arte, os figurinos, assinados por Ronald Teixeira, os movimentos, dirigidos por Viétia Zangrandi, a iluminação, de Adriana Ortiz, estão articulados em perfeita afinação. A casa transparente, como se fosse de vidro, etérea, cercada por um jardim de cascas de árvores, evocação remota de uma natureza morta, dimensiona o lugar da ação sob um tom rascante. É um lar desfeito no ar. Os figurinos indicam as personalidades e as funções dramáticas, traduzem as inclinações emocionais tanto no estilo como nas cores. A iluminação, desenhada como se fosse um nervo exposto, dimensiona o espírito da ação com extremo rigor.

E há mais para ver, para quem ama teatro. A direção de ator é um show dentro do espetáculo – há em cena um elenco no sentido mais pleno do termo, um conjunto de intérpretes a serviço de um conceito muito claro de teatralidade. Michel Blois expõe o filho desajustado, delirante, inconsequente e submisso, quase invertebrado, em carne e alma, mas comovente, desempenho preciso na fragilidade física e nas expressões faciais. Leonardo Franco, uma força bruta em cena, causa repúdio e comoção no marido a um só tempo cafajeste e dedicado, evidencia os meandros de um protótipo, o pai omisso, farsante, líder de uma família de mentira. Isabel Cavalcanti é a mãe Rivotril, uma surpresa ambulante, um turbilhão voraz de sentimentos, assina um desempenho estarrecedor, desenha a mãe negligente e leviana, incapaz para o amor, covarde diante da vida, apesar da inteligência e da percepção aguda dos abismos existenciais ao redor. Raquel Rocha, no papel de Delia, a amante e secretária do pai, um contraponto dramático de razoável dificuldade, é uma revelação de atriz – o seu desempenho é corajoso, inspirado, inteligente, ousado, distante do sentimentalismo rasteiro, mantém uma fina sintonia com a mecânica desafiadora do texto. Mabel Cezar acontece em cena, ou melhor, na plateia, sob todos os tons do inusitado – é a força antagonista surpreendente, porque inútil, condição explorada pela atriz de forma magistral. No saldo deste tabuleiro de peças, há um jogo palco-plateia delicioso de ver.

De fato, este belo trabalho de teatro é um dos bons acontecimentos teatrais do ano: o eixo da cena toca diretamente no estado de mentira em que as pessoas optam por viver, ainda que paguem um preço caro, o preço de sua própria autodestruição, resultado direto da covardia existencial. Nick Silver escreveu uma peça de comovedora carga simbólica. Ela busca implodir diretamente o mito maior da nossa sociedade, o mito do sujeito racional, dedicado a viver com a verdade, feliz, arquiteto existencial hábil, competente o bastante para construir a própria vida sob uma aura de completa realização. E revela como a verdade passa distante: somos reféns de um estado primitivo anterior, que buscamos calar. As forças sociais que nos rodeiam – e nos governam – nos conduzem impiedosamente, para conter a fera. E serão capazes de cegar-nos, para nos manter na ordem de mentira que previram para nós, para fazer de conta que um monstro irracional não habita o nosso interior. E o pior de tudo: esta é a melhor solução para vida em sociedade. Dilacerada, claro. Parece complicado? Ah, ok, esqueça a teoria e corra, vá ver – este teatro do nosso tempo, pós-dramático e pós-moderno, nos dá o privilégio da pura sensação do conceito. Somos sim, afinal, migalhas pensantes nômades, mas o teatro pode ser nosso porto de salvação, pode ser ali onde podemos purgar o fato de sermos assim, figurações selvagens do nada, destinadas ao pó. Excelente, não deixe de ver.


(UM BELO ESPETÁCULO-SURPRESA!)


    Está em cartaz, no Mezanino do Espaço SESC (Copacabana)até o dia 16 de novembro (2014) um espetáculo que merece recomendação: ADORÁVEL GAROTO (Beautiful Child).
          
  Trata-se da estreia, como diretora, de MARIA MAYA, que, de forma muito “ousada”, foi buscar logo um texto de NICKY SILVER, um dos mais festejados dramaturgos da atualidade, nos Estados Unidos, para dar o pontapé inicial na sua nova carreira de diretora, que espero acumule com a de atriz.
Mas, como dizia minha avó, só pode “ousar” “quem tem garrafa vazia pra vender”. Traduzindo, para aqueles que não tiveram uma avó sábia, como a minha, e que adorava ditos populares e frases feitas, só com competência, vale a pena arriscar.  Isso, é cereto,MARIA provou que tem, nesta sua primeira experiência em direção.


  O autor do texto já é bem conhecido, no Brasil, por algumas peças aqui encenadas, como “Os Altruístas”“Homens Gordos de Saia” e “Criados em Cativeiro”.  Mas seu nome, entre nós, está mais ligado a Pterodátilos, montagem protagonizada por Marco Nanini, que foi muito premiada e deixou ótimas lembranças aos amantes do bom TEATRO


 NICKY, como MARIA, também é ousado em seus temas e, utilizando um humor perfurante, ferino, cáustico, explora os dramas do dia a dia, com o dedo no núcleo da ferida, mas de uma forma, aparentemente, delicada, como se não desejasse provocar dor.  Mas ela chega; não fisicamente, mas atinge a alma do espectador.  Por vezes, alguns diálogos de SILVER se assemelham ao Teatro do Absurdo (realismo absurdo).


O elenco.




No caso de ADORÁVEL GAROTO, o tema em discussão chega a ser patético, e a plateia sorri, em algumas cenas, com aquele “riso amarelo”, de constrangimento, diante do que vê e ouve.  Parece surreal o centro da trama nesta peça.  A pedofilia, assunto tão exposto, atualmente, em todas as vitrinas midiáticas, é abordada num relacionamento entre um professor e um garoto de oito anos, Brian (NEM EU ME ENGANEI AO ESCREVER, NEM VOCÊ ESTÁ LENDO ERRADO.)  Faz  lembrar uma relação que ocorre, entre um homem e uma menina, em Blackbird, um excelente espetáculo, ainda em cartaz.

O texto de SILVER amalgama diversos gêneros, numa combinação de drama, comédia e farsa, abordando temas diversos e arrebatadores, como os mais insólitos tipos de infrações, isolamentos, punições, perversidades, negação de toda ordem, disfunções físicas e, principalmente, psicológicas e sociais, além da sexualidade, captada por todos os tipos de lentes, com focos exatos ou desfocada.  Seus personagens, praticamente todos, são tipos urbanos, nunca simples e desinteressantes.  Todos passeiam por seus textos com um humor ácido na ponta da língua, muito críticos e cruéis, em maior ou menor escala.
ISAAC (MICHEL BLOIS), o protagonista, professor de Arte e também pintor, fere um código moral, em função do que passa a ser alvo da repugnância do público, mas, ao mesmo tempo, é acarinhado, por um sentimento de piedade, em função de sua justificativa para o seu ato, o que lhe parece tão puro e natural - pelo menos aos seus olhos.
Michel Blois/Isaac.

ALGUNS DESTAQUES:


    1) Bom texto, mas não o melhor de NICKY SILVER, na minha opinião.


               2) Ótima direção, de MARIA MAYA, para a sua primeira experiência na área. Que venham muitas outras!



               3) Elenco bem afinado:


 MICHEL BLOIS (ISAAC) dá conta do filho desregrado, desajustado, desatinado, insensato, alienado, delirante, inconsequente, submisso e frágil, muito frágil, tanto física como moralmente, o que passa ao público, com sua ótima interpretação, marcada por perfeitas inflexões, entonações, modulações de voz e, principalmente, expressões faciais.




LEONARDO FRANCO (HARRY), há algum tempo afastado dos palcos, mas sempre muito bem-vindo e apto a fazer um bom trabalho, interpreta um homem de caráter, no mínimo, duvidoso, chefe de uma “família de papel” e “no papel”, totalmente omisso quanto à criação e à vida do filho, ao qual fez questão de levar à universidade, onde o rapaz passaria a morar, sem voltar a casa, até o momento contado na peça, como uma simbologia do rompimento dos laços entre pai e filho.  Irônico, meio cafajeste, mentiroso, ardiloso.  Bom o trabalho do LEO.

   ISABEL CAVALCANTI (NAN) interpreta a mãe que ninguém gostaria de ter. Parece viver totalmente em outro planeta, sem referências de sensatez, ponderação, bom senso, ao mesmo tempo, muito irônica, com o marido, e negligente e leviana, com relação ao filho. Uma verdadeira “porra-louca”, bem interpretada pela atriz.


      MABEL CEZAR (DRA. ELIZABETH HILTON) sabe tirar partido da situação - não sei se vinda da direção ou se já existente no texto (acredito mais na segunda hipótese) - de atuar sentada na plateia, como espectadora de todo o drama, interferindo, vez por outra, e arrancando gargalhadas da assistência, com suas críticas e sugestões.  Não é uma representante do público, como se pode pensar, mas é alguém que observa, de fora, a situação e se envolve nela.  Bom o seu trabalho.


    RAQUEL ROCHA (DÉLIA) é a secretária de HARRY, e sua amante.  A atriz convence na pele da “outra”, a fraca e oprimida, relegada a um plano inferior, que só faz aumentar, com a chegada de ISAAC.  Também gostei de sua atuação.


            5) A iluminação apresenta ótimos momentos de beleza plástica.

            6) O cenário é simples, porém muito original, criativo e inspirador: uma casa com paredes de vidro, apresentando apenas um cômodo, uma sala de estar/jantar, com poucos móveis e objetos de cena, rodeada por um “jardim” totalmente seco, sem vegetação viva, apenas coberto por lascas e pedaços de madeira morta.  Bastantes sugestivos os detalhes da “vegetação” do “jardim” e da transparência, proporcionada pelas paredes de vidro, como se o autor do texto desejasse não esconder todos os tipos de situação que se passam dentro daquelas quatro paredes ou para atrair o público para o que se passa lá dentro.






SINOPSE (fornecida pela Produção, com adaptações):

            Vivendo sozinho desde os tempos da faculdade, ISAAC (MICHEL BLOIS), já adulto, volta à casa dos pais, HARRY (LEONARDO FRANCO) e NAN (ISABEL CAVALCANTI), em busca de abrigo.

            O casal, de meia-idade, vive em conflito, mantendo um casamento “de fachada”.  HARRY está tendo um caso com sua secretária, emocionalmente instável.

            O rapaz encontra um lar esfacelado pela incomunicabilidade entre seus pais, e tudo se agrava, quando ele expõe os motivos de sua volta, que desnorteiam os pais, já em crise.

O drama do filho, por vias inesperadas, acaba unindo HARRY e NAN, em torno de um objetivo comum: salvar e proteger o próprio filho, apesar de ele ter quebrado um código moral absolutamente inquestionável.  Filho é filho.

      Amor, culpa, memórias e julgamento se entrelaçam nesta trama, que reúne humor e drama.


FICHA TÉCNICA:
Texto: Nicky Silver
Adaptação: Gustavo Klein
Tradução: Roberto Bürguel
Direção: Maria Maya

Elenco: Isabel Cavalcanti (Nan), Leonardo Franco (Harry), Mabel Cezar (Dra. Elizabeth Hilton), Michel Blois (Isaac) e Raquel Rocha (Delia)

Direção de Arte, Cenários e Figurinos: Ronald Teixeira

Direção de Movimento: Viétia Zangrandi

Iluminação: Adriana Ortiz

Assistente de Direção: Álvaro Chaer

Preparação Vocal: Verônica Machado

Cenógrafos Assistentes: Eloy Machado e George Bravo

Figurinistas Assistentes: Eloy Machado e Liza Machado

Assistentes de Produção: Ailime Cortat e Alessa Fernandes

Visagismo: Mayco Soares

Designer: Letícia Andrade

Marketing: Fábia Gomes

Mídia Social: Júlia Mendonça

Fotos: Daniel Chiacos

Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Produção Executiva: Letícia Napole

Direção de Produção: Giba Ka e Maria Maya

Realização: Dois Pontos Produções e De Paula Produções




(FOTOS: DANIEL CHIACOS)

Um espetáculo sobre a perda da beleza 

Adorável Garoto”, com texto de Nicky Silver, é uma peça sobre a falência da sociedade em transmitir qualquer lição de moral às novas gerações. E sobre a perda da beleza que isso causa. Como quem monta um quebra-cabeças, o público vai identificando possíveis relações entre os personagens e, na medida em que o quadro vai se fechando, mais o abismo vai se abrindo. Com direção de Maria Maya, em cartaz na Sala Mezanino do Espaço Sesc Copacabana, o espetáculo está entre aquelas montagens que sugerem reflexão na mesma medida em que oferecem entretenimento de altíssimo nível. Com Michel Blois, Isabel Cavalcanti, Leonardo Franco, Raquel Rocha e Mabel Cezar no elenco, a peça fica em cartaz até 16 de novembro. A ver! 

Mesmo autor de “Pterodátilos”, de “Criados em Cativeiros”, de “Homens gordos de saias” e de “Os Altruístas”, Nicky Silver é um autor norte-americano conhecido pelo seu humor ácido, pelos seus diálogos sofisticados e por seus temas reveladores. Para o autor de “Beautiful Child”, escrita há dez anos, beleza talvez seja justamente o que é porque é também intocável. 

Na história, o filho Isaac (Michel Blois) volta para a casa de seus pais, Harry (Leonardo Franco) e Nan (Isabel Cavalcanti). Ele já tem mais de trinta anos, é pintor e professor de arte em uma escola para crianças, mas pediu demissão. O caso envolve um garoto de oito anos, Victor, por quem Isaac se apaixonou. A peça começa com Délia (Raquel Rocha) fazendo sexo oral em Harry, mas ele lhe adverte em seguida de que não abandonará sua esposa para ficar com ela. Nan sabe das aventuras sexuais do marido, mas também não se separa dele, enterrando-se cada vez em mais no álcool e nos antidepressivos. A psiquiatra Dra. Hilton, que atendeu Isaac quando esse ainda era criança, reaparece confessando a sua contribuição relapsa na formação moral do protagonista. Com habilidade, Nicky Silver, traduzido por Roberto Bürguel e adaptado por Gustavo Klein, pergunta com quais padrões éticos e morais pode a sociedade julgar um crime como o de Isaac. 

A direção de Maria Maya, com assistência de Álvaro Chaer, não investe no humor negro célebre de Silver, mas mantém a atenção do público através do ritmo bem sustentado das cenas. Os quadros se articulam de forma bastante fluída. Há a tensão na relação entre as figuras e há a poética na viabilização das imagens, com destaque para Délia sentada no banco externo da casa de Harry, para Dra. Hilton na plateia e para a oposição final entre Isaac e os demais. Há principalmente o cuidado em apresentar o tema e o contexto em redor dele, narrando com a delicadeza que uma dramaturgia dessa complexidade requer. 

Essa montagem de “Adorável Garoto” tem ainda o mérito dos bons trabalhos de interpretação. Michel Blois dá a ver um Isaac sensível e ingênuo, mas que não é bobo. Leonardo Franco e Isabel Cavalcanti revelam um casal sem intimidade, mas que ainda se apoia. Raquel Rocha constrói Délia com o lirismo de uma Macabeia e Mabel Cezar, talvez a única figura concebida a partir de sua comicidade, reforça a frieza prática de uma terapeuta que também tem seus problemas pessoais. 

O desenho de luz de Adriana Ortiz é melhor quando aproveita o cenário de Ronald Teixeira. A casa transparente, com livre comunicação com o resto do palco, e o ciclorama contribuem mais com o quadro quando se vê o sol escaldante penetrando pelo acrílico sem cor. A direção de arte, através das oposições entre cores (o azul e verde versus o bordô e o marrom) e texturas (a madeira e o acrílico) e entre roupas de inverno e de meia estação formam um quadro bonito, mas não tão facilmente justificável. Em todos os elementos, se requer uma audiência atenta.

Com exceção dos laços sanguíneos entre o filho e seus pais, nada une esses personagens que hora vemos lado a lado. O que faz, então, com que eles se relacionem? “Adorável Garoto” pode, assim, pautar a perda beleza entre os homens, essa que ficou para trás, abandonada em suas infâncias. A peça merece ser vista pela qualidade da reflexão que sugere e pela sua altíssima qualidade estética. Aplausos. 

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Flagrante da incomunicabilidade

Michel Blois. Leonardo Franco, Isabel Cavalcanti e Mabel Cezar 


Em diversos momentos de Adorável Garoto, texto de Nicky Silver, os personagens parecem não se comunicar: como não se escutam não respondem ao que foi perguntado; ou respondem com considerável atraso em meio a diálogos entrecruzados que propositadamente dão a impressão de uma estrutura caótica. Os instantes em que os personagens expõem com maior nitidez aquilo que sentem são os narrativos, os pequenos solos contidos no texto de Silver.

Na ciranda concebida por Silver (Adorável Garoto foi traduzido por Roberto Bürguel e adaptado por Gustavo Klein) há um casal, Nan e Harry, de relação desgastada, que enveredou pelo terreno da agressão; uma amante, Delia, que, mergulhada em suas próprias carências, tem dificuldade de perceber a situação na qual está envolvida; uma psicanalista, Elizabeth, que se coloca como uma espécie de olhar de fora, ainda que também enredada em conflitos pessoais; e um filho, Isaac, que retorna para casa trazendo uma revelação desestabilizadora que se traduz um misto de sentimento genuíno com evidente barreira ética. O autor de Pterodátilos volta a confrontar a plateia com trama familiar, na qual rasgos de humanidade não são suficientes para contrabalançar vínculos arruinados ao longo do tempo.
Maria Maya, diretora da montagem que encerra temporada no Mezanino do Espaço Sesc no próximo domingo, realça a incomunicabilidade dos personagens através de marcações, a exemplo das realizadas ao redor da casa. A psicanalista surge em meio ao público, como figura externa (condição reforçada por um ou outro comentário que ela faz sobre a peça em si). Desvinculada do meio familiar – em que pese, contudo, mencionado contato no passado –, Elizabeth vai se inserindo aos poucos, mas sem chegar a interferir decisivamente.
A cenografia de Ronald Teixeira – composta pela moldura da casa e por um jardim de folhas secas – permite que o espectador tenha acesso ao interior da moradia e, consequentemente, ao funcionamento da família. A iluminação de Adriana Ortiz é crepuscular, valorizando o meio tom, mais o insinuado que o frisado. Os atores fornecem desenhos claros dos personagens. Michel Blois, apesar de uma composição corporal que sugere (sem muita necessidade) estranhamento, constrói Isaac com contenção e sutileza. Isabel Cavalcanti potencializa o descontrole e a insatisfação de Nan e se sai especialmente bem na primeira longa passagem com Harry. Leonardo Franco imprime adequada concretude a Harry. Raquel Rocha projeta a ingenuidade e falta de visão de Délia. Mabel Cezar interpreta a contundente e, ao mesmo tempo, defendida Elizabeth de maneira algo linear.



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